Claudia Rodrigues – nascimento do Tao
03-01-1991</p><p class=”blocotextog”>Vivia em São Paulo, 26 anos, trabalhava como repórter na revista Guia Rural e cobria justamente as seções bicho-do-mato e natureza. Os assuntos favoritos eram concepção e fecundação, tanto de plantas quanto de bichos; aquilo me fascinava. Estava grávida de duas semanas quando fui demitida devido ao plano Collor, elaborado pela então ministra da economia Zélia Cardoso de Mello.
A Abril decidiu, pelo que me contaram, que todos com menos de um ano de casa seriam demitidos. Eu faria um ano de casa dois dias depois da demissão, no início de maio de 1990, mas meu orgulho ferido — amava trabalhar com aqueles textos, entrevistar biólogos, andar no mato — não permitiu que eu tentasse qualquer manobra e resolvi curtir eu mesma a tal da fase de procriação sem mendigar o emprego retirado. Meu marido, que também trabalhava na Abril, não estava na lista dos demitidos, então o melhor a fazer era curtir a barriga, aprender a comer de jeito decente, preparar-me para a maternidade em mim.
A fecundação pintou no meio da paixão, não havia camisinha que chegasse, de vez em quando vacilávamos, mas antes do resultado do exame eu não imaginava que seria mãe tão cedo. <
Geraldo e eu ficamos em estado de graça e comecei a curtir meu corpo como nunca. Os seios pequenos viraram peitos de verdade, aquelas pernas secas, que só fechavam no joelho, viraram belas coxas, surpreendentemente retas pela primeira vez na vida. Pelo menos na gravidez eu estava gostosa, como sonhava desde a adolescência. Pela primeira vez na vida eu não era mais a magra de ruim, a que tinha um verme que comia tudo nela e outras pérolas que ouvi desde pequena, já que sempre fui de comer muito e não engordar.
Estar grávida possuiu esse incrível novo significado no meu bem-estar e até na minha sexualidade, mas desde as primeiras semanas uma preocupação latejava em mim, era com o ser mãe. Eu não havia sido criada para ser mãe, sempre fui a dos livros, a bem-resolvida, a independente, a que iria morar sozinha, viajar o mundo, o que de fato já vinha realizando. Não sabia fritar um ovo, não havia cuidado da minha irmãzinha, que nasceu quando eu tinha 16 anos, precisava parar de beber e fumar, além de inteirar-me sobre aquele novo corpo e o tal do ser mãe. Eu mãe!?
Parar de fumar e beber foi espontâneo, só de pensar dava náusea, inteirar-me sobre o novo corpo foi mais complicado. Perambulei com o pai por três obstetras indicados por ex-colegas do trabalho. Não deu liga, Geraldo até que achava normal, dizia que era assim mesmo e contava da cesariana da Mariana, filha dele e na época com 10 anos.
Explicava-me o pai experiente e carinhoso que era, sobre o tecnicismo dos médicos, embora estivesse convencido que no caso da Mariana a cirurgia havia sido necessária, por descolamento de placenta. Aí fiquei encaraminholadíssima e como não existia internet e estava duranga, fui aos sebos e livrarias. Os benditos livros que encontrava nas livrarias, de meu agrado, não estavam nas prateleiras dos sebos, mas eu passava um tempo das minhas manhãs, também para fugir da cozinha, confesso, acocorada entre livros, tentando achar as respostas para termos como descolamento de placenta, placenta prévia, cordão umbilical, cordão enrolado, contrações, líquido amniótico, bolsa rota, aleitamento, umbigo do nenê…
Por Deus, aquilo era mais, bem mais complicado do que germinação de planta, acasalamento de tuiuiús, consangüinidade entre micos. Já estava fazendo o pré-natal com um sujeito que mais parecia um morto-vivo; fitava-me com um olhar vago falando paulistês, quando resolvi ligar para minha mãe, em Porto Alegre.
Quatro partos normais, o último aos 40 anos, a médica dela ainda era a que havia me atendido pela primeira vez aos 14 anos. Peguei um avião e fui, ainda tinha a questão da cozinha, não queria ser uma mãe-delivery food, havia as dúvidas sobre conseguir amamentar, quase ninguém conseguia desde a síndrome de Atlanta, segundo um livro de Karen Pryor, A Arte de Amamentar.
No consultório da Dra Candinha encontrei calor humano, ela falava a minha língua, gauchês, gostou de me ver, contei sobre a minha vida, viagens, matérias e meu desejo de ter parto normal sem anestesia; ela ficou uma hora e quinze minutos comigo e concordamos que eu poderia viajar de São Paulo para Porto Alegre de dois em dois meses até chegar a hora do parto. Sim, ela faria um parto normal, que denominava semi-leboyer.
Em São Paulo voltei às livrarias, na outra consulta já tinha a pergunta pronta: porque semi-leboyer e não leboyer de todo? Ela vacilou e disse à frase que calou fundo: se tudo der certo… O que pode não dar certo? Pelas barbas de netuno eu queria um médico que dissesse que tudo iria dar certo, mas Dra Candinha chegou a dizer que talvez ela não fosse a médica que eu estava querendo, ela não estava preparada para realizar a minha fantasia de parto de cócoras, por exemplo, mas faria sem anestesia, se eu agüentasse a dor. De toda a maneira era melhor que o Dr. morto-vivo.
Em São Paulo até o sexto mês relaxei e entreguei-me às leituras e receitas. No começo dava tudo errado, mas cheguei ao sexto mês fazendo feijão, bolinhos de espinafre, bolo de cenoura, arroz primavera, legumes cozidos e refogados. Se tentasse tudo junto queimava alguma coisa, daí era apelar para o elepê dos Titãs e dançar com a barriga.
O pai da criança adorou o novo tipo de esposa, de quase junkie, cabelos em pé e roupas rasgadas, lá estava eu deixando os cabelos a crescer, uma espécie de hippie de última hora naquela São Paulo lotada de yuppies.
Eu saía para a rua escutando rock com meu walk talkie, colocava a barrigona para fora, movia-me rapidamente, dava pulinhos, nadava, inclusive me jogava na piscina, a barriga fazia parte de meu corpo, eu estava adorando aquilo, parava na rua para falar com qualquer grávida, emocionava-me pegar bebês no colo, era uma espécie de seringa do querer saber quando encontrava as mães e babás com seus bebês na pracinha. Quase todas haviam passado por cesariana, poucas amamentavam, aquilo era assustador, eu queria parir e amamentar e os melhores livros falavam disso e da importância disso.
Tinha muito o quê aprender, mas às vezes a coisa enrolava, daí eu escrevia poemas, desenhava, pintava para relaxar. Filhote do feminismo, eu havia sido criada para ser uma nova mulher e isso excluía qualquer coisa do tipo técnicas domésticas; parar de trabalhar para criar um bebê, então, mesmo que a idéia fosse um ano, era vista como coisa de gente que iria desenvolver burrice para o resto da vida, engordar e xingar as crianças o dia inteiro por pura frustração, além do alto risco de ficar fora do mercado de trabalho para sempre.
Eram tempos difíceis para o exercício da condição mais antiga da mulher: a maternidade. Mas eu estava lá, tentando acostumar-me à idéia de ser mãe no início da década de 1990, o que não fechava bem com meus sentimentos já aflorados de querer grudar no recém-nascido.
Às vezes eu pegava o travesseiro e brincava de estar com o nenê nos braços. Não, eu não iria largá-lo assim tão fácil às babás. Será que emburreceria se ficasse cuidando dele por pelo menos um ano, um aninho só, o primeiro ano? Até engravidar meu sonho de consumo profissional era cobrir guerra, mas passei a esconder-me atrás de postes quando escutava um uivo de sirene.
Definitivamente eu não era mais tão corajosa, se enxergasse um policial na rua, mirava no revólver e ia parar do outro lado da calçada, sempre ligeirinha com minha barriga.
Na praça era visível a diferença entre os bebês com suas mães e os com babás. Um dia apareceu um casal com uma criança pálida e questionou se já tínhamos visto aquele menino de dois anos por ali com a babá. Não, ninguém o conhecia, a babá ia para um hotel mequetrefe com o namorado, segundo uma vizinha deles, e sabe lá o que fazia com o menino, pálido, tristinho mesmo. Foi de arrepiar, eu lá com minha barriga assistindo aquilo.
Havia creches, disseram algumas mães, talvez fosse mais seguro. As babás espionavam ressentidas, uma delas, que era enfermeira, atestou ser enfermeira uma pessoa mais qualificada. Mas ela era entre todas as babás a mais esquisita aos olhos das freqüentadoras da praça. A criança não podia sujar-se, era grande, já sabia caminhar, mas ficava no carrinho quase o tempo todo, tomava vitaminas com um tubo de injeção sem agulha, assim socado, escorria a vitamina colorida pelo lado da boca e a enfermeira limpava com um pano branco, mordendo os dentes, depois penteava o menino com uma escovinha azul.
As mães não falaram mais nada, o homem impotente, a mulher um poço de culpa, explicou que trabalhava doze horas por dia, era uma empresária bem-sucedida, a coitada da mãe.
Eu já era uma pessoa de 26 anos, bem descolada, cheia de estrada, mas sentia-me como uma adolescente, era muita informação, muita coisa para eu pensar, refletir, decidir quando chegasse a minha hora de cuidar ou terceirizar a maternidade.
Em parte, em partes, em duas partes do dia, como eu faria para cuidar de um bebê, amamenta-lo e trabalhar ao mesmo tempo? Grávida eu não ia mesmo conseguir emprego, mas como faria depois, quanto tempo eu teria para ficar com o nenê sem ficar burra, gorda e desempregada para sempre? Uma neurótica em cima da criança? Os livros falavam que excesso de mãe também era ruim, podia ser pior do que mãe ausente. E a barriga crescendo, olhava a silhueta no espelho e sentia vaidade por possuir curvas. Geraldo me chamando de Leila Diniz dos anos noventa, fotografando cada gesto, cada pose do corpo em transformação. Melhor impossível.
Na consulta do sexto mês a Dra Candinha proibiu-me de voltar a São Paulo, eu tinha três centímetros de dilatação, colo do útero grosso, mas não podia mais viajar e deveria fazer repouso absoluto. Chorei bastante, mas até chorar dava medo, o choro podia expulsar o nenê pra fora da barriga. Como ler sempre foi o melhor dos passatempos para mim, eu enchia a paciência da minha mãe, que não dava conta de conseguir leituras especializadas no assunto favorito da hora: puericultura.
Fui para o abraço à barriga, os dias passavam numa boa, meio a contragosto eu tomava a medicação que supostamente seguraria o bebê, isso me desagradava bastante, havia uma porção de produtos químicos nos remédios e eu não me conformava com o corante, achava insensato remédio de grávida ter corante.
Com a chegada mais do que esperada do maridão, na 35ª semana, a Dra teve a bondade de me liberar do repouso para caminhadas leves e passeios, afinal não havia sinal de afinamento do colo do útero, apenas os tais três centímetros de dilatação.
Curti Natal e Ano Novo feliz de marido a tiracolo e a partir do dia primeiro estava liberadíssima, não precisava mais deitar por longos períodos, poderia levar uma vida normal, sem banho de piscina ou banheira.
No dia 2 de janeiro, com 36 semanas, amanheci com cólicas, minha mãe grudou em mim e avisou que enquanto eu não enxergasse estrelinhas de tanta dor, não estava na hora, mas as 21 hs resolvi dar uma passada na maternidade para ver como as coisas estavam.
>Uma médica de plantão me colocou ao lado de uma mulher que gritava muito e chamava Nossa Senhora do Bom Parto. Intui que ela estava vendo estrelinhas e até a Nossa Senhora do Bom Parto. Eu não tinha assim tanta dor como a vizinha, avisei à médica, mas ela identificou que eu estava com 3 cm de dilatação, deveria ser internada. Expliquei que estava com 3 cm de dilatação desde o sexto mês; ela ligou para minha médica, que estava numa festa, e foi decidido que eu deveria ser mesmo internada.
Olhei para o Geraldo, que segurava minha bolsa – a de documentos, óbvio – e senti a presença dela de raspão, era a Dra Intuição: eu deveria voltar para casa, não estava na hora, não deveria estar ali, a mulher do lado, a que gritava, ela sim estava para ter o filho, mas ninguém ligava para os urros da mulher, que estava ali pelo sistema público, passaram-me na frente dela, eu tinha um convênio e tratamento preferencial.
Fui encaixada na linha de montagem, tudo muito rápido. Retiraram Geraldo do esquema, fui colocada numa outra sala, me rasparam, enfiaram uma coisa horrível naquele lugar, o de trás, encaminharam-me para uma chuveiro, deitaram-me numa cama e eu dormi já totalmente desacompanhada da Dra Intuição, eu sentia cólicas como as da menstruação e estava bem ofendida pela coisa enfiada, que causou-me uma dor de barriga verde.
Acordei às 2 hs gemendo baixinho, sentia as mesmas cólicas semelhantes as da menstruação e vi que a Dra Candinha estava ao meu lado; muito carinhosa disse que passaria a noite ali comigo, que eu era fraca para a dor e ela me daria uma analgesia para eu dormir melhor.
Veio a enfermeira e deu o remédio na minha veia. Sempre odiei pico, já havia experimentado algumas drogas, mas pico jamais. Acordei pela manhã com os gritos de uma outra, pedi café, mas disseram que eu não podia, que a próxima a parir seria eu. Perguntei se podia levantar, o que foi negado, se eu estava com fome podia desmaiar. A médica havia dormido no hospital e quando apareceu autorizou-me a levantar e deixou eu beber um centímetro de café, o café aguado dos gaúchos servido em hospital, o centímetro já foi intragável.
Estava com muita fome e as cólicas só vinham de vez em quando, eu gemia, não eram assim dores do fim do mundo, não me achava fraca para a dor, eu nem estava gritando, eram parecidas com as cólicas de menstruação, que eu tolerava do mesmo jeito: com dengo e gemidos. Quando vinham eu me encolhia, parava de respirar, não houve santo para dizer que eu deveria respirar; percebi que havia lido pouco sobre o parto, tentava buscar arquivos armazenados em alguma parte do cérebro, algo sobre a respiração cachorrinho, moda na época, mas só lembrava dos cuidados com o nenê, eu saberia amamentar, saberia trocar a gaze do umbigo, dar banho japonês, fazer massagens.
Putz, eu não sabia parir, ficava parada olhando para a barriga, tentava uma luz, avisava ao Tao que era a hora, que precisávamos fazer alguma coisa. Novo toque às 8 hs: 6 cm de dilatação, de repente deitaram-me na maca e fui conduzida para uma sala cheia de equipamentos, passaram-me para uma maca mais desconfortável ainda e colocaram minhas pernas em cima daquelas alças de metal, que imediatamente cortaram minha circulação.
A médica conversava com as enfermeiras, de vez em quando ela examinava, ouvia os batimentos do Tao. Fiquei ali, reclamando das alças, não das cólicas, propondo que me deixassem levantar, andar ou ao menos tirar as pernas das alças. Eles acomodavam as alças, diziam que era assim mesmo, que todas as mulheres passavam pelas alças, que parto normal era assim, que eles não iam deixar eu ter o filho no chão acocorada, que era perigoso, o nenê ia bater com a cabeça no chão. É mesmo, eu não havia pensado sobre essa possibilidade, livros não têm filhos, vai ver era teoria, andei lendo demais, sonhando demais.
Entre as 8:30 hs e às 10 h eu fiquei enchendo a paciência deles para deixarem eu dar uma esticada nas pernas, se o nenê fosse nascer eu voltaria às alças. Decidiram que eu deveria tomar uma anestesia, estava nervosa e adiando a dilatação, segundo as enfermeiras. Tentei argumentar que não estava nervosa, não sentia tanta dor assim, apenas desconforto com a posição, que me dissessem o que fazer para dilatar, eu faria qualquer coisa; daí elas riram, dilatação não é assim, a anestesia vai ajudar, ainda não está na hora de fazer força.
Passados alguns minutos das 10 hs chegou o anestesista e mandou eu ficar de lado, imóvel. Foi a hora em que finalmente me livrei das alças, fiquei quieta como ele mandou, tranqüila por ter saído das alças, senti a agulhada, normal, mas minha perna mexeu sozinha, deu um tranco. Ele me xingou, disse que eu não podia fazer aquilo, era perigoso. Ora, pois, insisti que a perna mexeu sozinha, que eu mesma estava assustada com o puxão que deu e queria entender aquilo, insisti que o movimento foi involuntário, senti um clima esquisito no ar e perguntei se corria o risco de ficar paraplégica. Eles responderam que o Dr. Anestesista era presidente do sei lá quantas dos anestesistas do Rio Grande do Sul, que eu ficasse tranqüila, estava nas mãos de um excelente profissional. E grosso como ele só, deu até saudade do sorriso pastel do Dr. paulista morto-vivo. Não senti mais as pernas, eles tiveram que removê-las para cima dos ganchos outra vez.
Começou um zum zum, o anestesista precisava estar em outro lugar, queria que eu pegasse no tranco literalmente, depois houve a troca no turno de enfermeiras e eles começaram a pressionar a médica para fazer uma cirurgia, mas ela resolveu romper a bolsa como última tentativa.
Eu rezava, última tentativa era demais para mim, só lembrava do conselho da mãe: se não enxergar estrelinhas não vai para o hospital. Caracas, eu tinha ido cedo demais e agora eles tentavam tirar o Tao a força, eu sem ver as tais estrelinhas.
Às 11:30 hs a médica ligou para seu companheiro de equipe, o marido Raul, sem ele, ela não fazia a cesariana, uma praxe dos dois, para minha sorte. O Dr. da anestesia largou mais anestésico na minha corrente sangüínea, já era para a cesariana, pelo que entendi. Eu rezava para que o marido da médica não chegasse.
Ela se aproximou do meu rosto, bem carinhosa, ignorando a impaciência de todos na volta e disse: nós podemos começar agora os procedimentos para a cesariana porque está difícil demais, tu estás com apenas 8 cm de dilatação e isso já faz mais de hora, tu estás cansada. Eu consegui dizer, chorando, que não estava cansada e perguntei se o nenê estava bem, se corria risco de vida. Ela respondeu que não, os batimentos do nenê estavam bem, havia sinal de troca com a placenta e a água da bolsa estava clara, poderíamos esperar até o Dr Raul chegar. Relaxei, ela era amiga ainda, mas aquelas pessoas todas de touca verde definitivamente não eram.
Acho que peguei no sono, mas despertei feito louca quando vi ao meu lado esquerdo o tal Dr. Raul, que nunca tinha visto mais gordo, mas tive a certeza imediata de que era ele, pois junto dele chegou também uma enfermeira pilotando um carrinho cheio de equipamentos metálicos, a cabine do Boeing que ia atravessar meu corpo.
Enlouqueci completamente, fiquei fora de mim, empurrei o anestesista, que foi parar na parede do outro lado, tentei levantar, eles me seguraram, caiu um negócio que estava preso na minha mão e escorreu sangue pelos meus dedos, o anestesista ficou bravo, dei outra direita nele manchando sua roupa, a médica tentava me acalmar e eu dizia: Não, não façam isso, não me ataquem, não ataquem o Tao, eu gritava que eles eram loucos, aquilo uma traição; caiu a maçaneta da argola que prendia as minhas pernas, eu queria as pernas de volta para sair dali, eles não podiam me conter daquele jeito, não era assim, não era justo, eu estava numa espécie de surto psicótico, maior mico.
O Dr. Raul segurou meu rosto e falou alguma coisa em voz baixa… o anestesista virou de costas, decerto para disfarçar a irritação. Do pânico passei a chorar baixinho, ofegante, como um bicho acuado, pronto para ser abatido.
Começaram uns procedimentos, passaram uma coisa gelada na minha barriga, levantaram um pano que escondeu o rosto da Candinha, eu respirava com profundidade, preparava-me para aceitar a cirurgia, não era o fim do mundo, eu teria finalmente meu bebê nos braços, daria um jeito de levantar com a barriga costurada e cuidar dele, eu iria amamentar, isso era muito mais importante do que parto normal, além de tudo eles prometeram que não iriam me apagar, mesmo se o nenê não chorasse e precisasse de reanimação.
Eles reconheceram que eu estava colaborando em direção à cesariana, veio uma onda de ânimos acalmados, pela primeira vez houve paz, algum acordo naquela sala, até o anestesista abaixou a crista, eles pareciam sentir alguma piedade.
De repente Dra Candinha apareceu entre as minhas pernas com uma cara de palhaça, abaixando o pano, eu a vi com um sorriso rasgado de orelha à orelha, bateu palmas no ar e disse: temos 10 cm de dilatação, vai ser normal, mandou a enfermeira retirar a mesa com os badulaques e então eles diziam para eu fazer força quando a barriga ficasse dura. Eu olhava a barriga e fazia força como podia, segurando no braço do Dr. Raul e empinando meu corpo para frente, à esquerda, afastando-me do lado direito, onde estava o anestesista.
Foram três ou quatro forças e então a Dra falou: esse bebê vai surpreender pelo tamanho. Perguntei se de graaaaaande ou pequeeeeeno, no meio de uma força e aí o Tao apareceu, já estava de pernas para o alto feito um porquinho e chorava forte, de cabeça para baixo.
Eram 12:25 hs. Ela o largou em cima de mim e disse que era bem grande para 36 semanas. Abracei-o com o braço esquerdo, ele ainda chorava alto, o anestesista me conteve para eu não arrancar o mesmo não sei o quê que estava grudado na minha mão direita, mas uma enfermeira levou a minha mão direita com delicadeza, ajeitando-a para que eu o abraçasse também com a mão comprometida, olhei nos olhos do Tao, bem abertos, ele parou de chorar, eu disse que ele era a minha cara e ia ter que lidar com isso. Todos riram, até o anestesista, o pediatra chegou com uma pano verde para levá-lo, Deus sabe para onde. Deixei a mão livre, à esquerda, em cima do quentinho molhado que restara na minha barriga, devolvi a outra a eles e senti pela primeira vez o vazio da ausência do Tao.
Impacientei-me outra vez, de novo eu queria as pernas de volta, queria ir atrás dele. Olhei para o outro lado e vi o Geraldo apavorado tentando se aproximar de mim, quase irreconhecível com aquela touca verde, umas olheiras de conde drácula. Eu apenas disse para ele ir atrás do pediatra, vai logo atrás do médico que levou o Tao, encontra uma marca importante do nenê para ele não ser trocado. Todos riram, o anestesista falou que eu era muito desconfiada e turrona, mas sabia afinal o que queria e havia conseguido. Tasquei uma frase do Mario Quintana: “muito obrigadinho pelo seu elogiozinho”. Todos riram novamente, fizeram o que tiveram que fazer e até que colaborei, tentando aplacar minha ansiedade, mas o tempo não estava a meu favor, demorava a passar, a Dra Candinha retirou a placenta, era grande, o cordão também, comprido e grosso, eu quis ver. Depois costurou onze pontos da epsiotomia e daí fui colocada num corredor frio, passou uma enfermeira correndo com um negrinho lindo no colo, os cabelos encaracolados como se tivessem sido arrumados no salão com gel, ela teve a gentileza de me deixar vê-lo de perto, eu perguntei se era bom correr com ele daquele jeito, ela explicou que era para não tomar friagem. Então vá, vá logo para ele não tomar friagem.
Eu tremelicava, mas estava feliz Geraldo me encontrou no tal corredor e contou que o Tao havia tirado nota 8 e10 e havia mijado na cara do pediatra. Nos matamos de rir, o pai disse: é espada, nasceu mijando no pediatra. Rimos muito e eu de novo pedi que ele ficasse com o Tao até que eu também pudesse. E sim, ele possuía uma marca, um microfurinho, que tem até hoje, na orelha esquerda.
As benditas pernas estavam dormentes, sorte deles porque se não estivessem eles não conseguiriam me deixar ali feito idiota, com frio e sem coberta, apesar de ser alto verão, sem poder olhar o microfurinho da orelha do meu nenê.
Levaram-me para o apartamento, arranjaram um edredom, parei de tremer, mas as pernas não voltavam ao normal, o que me deixava bastante irritada porque eu queria levantar e ver o menino. “Vamos, pegue o menino e fuja para o Egito”, brincamos o Geraldo e eu com a frase célebre.
Trouxeram o Tao depois de três horas e de três vezes que pedi para o Geraldo ir vê-lo. Tao não conseguia mamar ou eu não conseguia dar o peito. Deram glicose a ele, pingaram nitrato de prata nos olhos, vacina, mas ele estava ali e ia aprender a mamar, um bebezão de 36 semanas com 49 cm, 3.280 kg.
Foi tratado como um bebê a termo, as enfermeiras tinham o prazer de dizer que não era prematuro. Levavam e traziam, feito um charutinho, vinham todos os bebês, já glicosados, em um carrinho gigantesco empurrado a milhão pelo corredor. Aquilo era bem esquisito, tirava-me o senso de humor completamente. Pedia sempre que o levassem para o berçário por último, às vezes esqueciam por mais algum tempo no quarto, mas de repente entrava uma de branco e crau, com a maior pressa levava o menino para o berçário.
Ele fazia biquinho para mamar, eu espremia o colostro direto em sua língua, ele tomava bem pouco, não dava tempo.Era preciso ir logo para casa, sair dali daquela confusão, tudo tão sem sentido.
Na manhã do dia 5, quando deveríamos ir embora, não o trouxeram do berçário junto com os outros bebês, o médico disse que ele havia tido hipotermia de madrugada e depois febre, que era preciso fazer exames e ficar na incubadora. Exames e mais exames, radiografia dos pulmões e o veredicto: septcemia, infecção generalizada por estafilococos epidermides. Para completar eu havia sofrido algo com a anestesia e meu licuor saía ou não ficava onde deveria, sei lá, causando-me uma dor de cabeça que nunca mais tive nem quero ter na vida.
Colocaram o Tao numa incubadora, vedaram-lhe os olhos, picavam-lhe a cabeça para ministrarem antibióticos. Eu saía do quarto contra as normas do hospital de três em três horas para amamentá-lo, mas sempre chegava depois da glicose, até que passaram a dar a ele o leite nanon, já que segundo a enfermagem, em peso, eu não tinha leite suficiente. Arranjaram-me uma bomba e eu tirava o leite: parecia uma manteiga, amarelão, um caldo grosso. Elas misturavam esse caldo no nanon da mamadeira dele, eu chorava quando chegava no horário da troca do local das picadas e o via gritar, tão desprotegido com aquele manuseio técnico. As enfermeiras explicavam que era necessário trocar o local das picadas para poupá-lo de dores maiores e hematomas, diziam que o choro alto era sinal de vigor e saúde dele. Por conta do tal problema do licuor, que me fazia perambular pelo hospital agachada, feito uma velhinha corcunda, deixaram que eu ficasse seis dias, mas recebi alta a força no sexto dia.
Em casa, nas poucas horas que eu ficava por lá, minha tarefa era tirar o leite e armazena-lo numa bolsa térmica com gelo. Acordava perto da meia noite e tirava um pouco, às 3 hs tirava um tantão, depois às 6 hs; às 7 hs já estava chegando na maternidade e nessas madrugadas eu sentia uma saudade profunda dele, às vezes chorava baixinho por imaginá-lo lá sozinho, com luzes acesas naquele berço de plástico.
No hospital tentei dar o peito por onze dias, as enfermeiras duvidando, nenê de incubadora não pega o peito, não tem força, eles são assim sem reflexo, diziam para eu parar de sofrer, que aquilo era tortura, que meus seios estavam machucados, beliscavam as bochechas dele e o chamavam de preguiçoso. Eu ficava brava, dizia que era um forte, um vitorioso, que iria conseguir.
Não desisti do ritual que eu mesma improvisei: oferecia o peito, ele não conseguia pegar, espremia um pouco de leite, ia levando, até que ele chorava, então eu dava meu leite coletado na mamadeira e o danadinho bebia tudo bem rápido, depois eu tirava mais leite com a bomba, pois o contato com ele fazia meu leite sair mais fácil. Desenvolvi uma estratégia tal que conseguia bombear o leite com ele no meu colo, rejeitando a ajuda das enfermeiras com a docilidade que podia para que tratassem bem do Tao na minha ausência.
No décimo segundo dia, sem mais essa nem aquela, ele começou a sugar no meu peito direito, bem delicadamente, mas chegou a engasgar a ponto de eu ter que levanta-lo, depois pegou de jeito e foi fundo; então o esquerdo começou a inundar minha roupa, jorrava uma cachoeira de leite impossível de aplacar, enchia a minha mão e eu deixava cair no colo. Alguém disse: Que nojo! Não sei quem foi, aquilo não era para mim nem para o Tao; devia ser um nojo próprio da pessoa com ela mesma. O que eu senti, o que ele sentiu, só nós dois sabemos porque ele também desaguou e o xixi escorreu das fraldas; bendito xixi, bendito leite, bendita água repleta de bons sentimentos.
A partir dali ninguém mais se intrometeu, voltei a sorrir e a fazer piada, tentei ficar no hospital de madrugada, mas isso não foi permitido, então passei a acordar mais cedo e ia para o hospital ainda antes do sol nascer, o que era um problemão para a maioria das enfermeiras, mas eu já havia encontrado uma aliada, que possuía uma espécie de predileção pelo Tao. Dei uma caixa de bombons para cada uma das enfermeiras, embora soubesse que para muitas aquilo não significava nada, nenhum sentimento especial.
Aos dezenove dias Geraldo e eu fomos buscá-lo finalmente, era o dia da alta e foi difícil lidar com a burocracia, a espera pelo pediatra, eu era um animal bravo apartado da cria e incomodei horrores.
Adriana, a enfermeira que gostava dele, fez questão de vesti-lo pela última vez e dessa vez com a roupinha que eu havia levado, era a primeira vez que ele vestia uma roupa própria, um macacãozinho com capuz de orelhas. Ela se emocionou ao entregá-lo para mim, era um ser humano naquela vastidão de robôs.
Tudo estava perfeito, não fosse o pediatra chegar com uma receita de nanon e água com glicose. Rasguei na frente dele, disse que tinha leite suficiente, que as mamadeiras encerravam-se ali. Ele disse que acreditava, admirava minha dedicação, mas esperava-nos no consultório em dez dias, prazo para que o Tao engordasse no mínimo 350 gramas.
Antes de sairmos, exultantes com nosso filhote nos braços, aquele pacotinho de gente, o pediatra disse qualquer coisa no ouvido do Geraldo, que chegou em casa encafifado e andava com minha mãe pelos cantos sussurrando algo sobre meu leite, de repente, não ser o bastante. Senti que a coisa era séria, mas não me abalei, coloquei-os para trabalhar para mim: suco e água em abundância no meu quarto, visitas terminantemente proibidas, eles as receberiam na sala. Eu ficava pelada o dia inteiro, o que de certa maneira já intimidava qualquer um.
Agora eu era um animal defendendo a cria de qualquer invasão, que se danasse o mundo, as formalidades, eu que nunca fui de fazer média, sempre considerada louca de pedra, justo naquele momento não ia fazer social. Minha mãe ainda tentou me enquadrar: “O que eu digo para a fulana e beltraninha, que querem tanto te ver, que isso e que aquilo?” Eu respondia as coisas mais absurdas: diz que peguei carona num cometa, num rabo de foguete, que um balão mágico me levou para Vênus, só eu e Tao. No final ela entendeu minha necessidade, meus direitos, minha alegria e virou mestra em desculpas sociais.
Eu nem queria saber quem tinha ligado, muito menos quem estava na sala. Abri poucas e raras exceções para pessoas que não achavam estranho eu ficar pelada com o nenê grudado. O Tao só de fraldinha em cima de mim o dia inteiro, mamava feito índio, quando queria e quanto queria, olhávamos nos olhos um do outro prolongadamente; na minha cabeça de louca fora da casinha, se eu olhasse para ele e ele para mim profundamente, não teria problemas de visão.
Dormia, sonhava, sorria dormindo e quando isso acontecia, surgiam covinhas em suas bochechas, gostava de me ouvir cantar, prestava atenção em mim, juro que prestava, passou a fazer cocos imensos, que eu teimava em dizer que tinham cheiro de doce de leite. Quando ele chorava, talvez fossem as cólicas idiopáticas, eu o embalava criando músicas com letras que garantiam a ele jamais cair outra vez nos braços de qualquer enfermeira. Na minha cabeça de piradex totalex aquilo era trauma de separação. Lá pelas tantas ele se convencia de que estava seguro, esquecia das enfermeiras e dormia. Eu não o largava, voava para o banho e já estava de volta, almoçava correndo e estava com ele outra vez. Era tudo o que eu queria, nada mais me movia e nada antes havia me movido ou comovido tanto.
Aos dez dias fui à consulta do pediatra, Geraldo já estava em São Paulo de volta ao trabalho, ligava diariamente com novidades: entregaram o berço, Mariana mandou dizer que escolheu o lençol de ursinho… Pai e maninha nos esperavam com ansiedade, faltava pouco, em uma semana embarcaríamos.
O Tao havia engordado 500 gramas e o médico ficou estupefato com isso, chegou a perguntar se de fato era só meu leite que ele estava tomando. Oras, ainda tinha que lidar com dúvidas tão cruéis. Amamentei ali mesmo na frente dele, toda orgulhosa, mostrando a ele o quanto vazava o leite do seio oposto ao que ele mamava. Meu leite é gordo doutor, emagreci pacas, toda a gordura vai para o leite. Nos testes o Tao tirou nota dez, segundo o doutor. Testes que ele respondeu bem, mas não gostou, só arranjando consolo no peito outra vez.
Antes de voltar para São Paulo ainda precisei levá-lo a um médico de nenê especialista em ossos; esse foi dos bons, disse que o Tao estava muito bem, nada de bactéria atingindo os ossos, bons reflexos, um gurizão cheio de saúde, que eu me despreocupasse, tinha um bebê saudável para criar. Menos mal, mas em São Paulo voltou à pressão com o histórico, queriam dar mil e uma vitaminas, novas vacinas, ultra-sonografias, testes, aquelas caras de espanto, desconfiadas do meu bebê gorducho e esperto, que já levantava a cabeça quando colocado de bruços, protestava, se aninhava, fazia tudo direitinho conforme o figurino. Mas os médicos nos alertavam, terrorismo puro, sobre eventuais problemas de visão, audição, motores e mentais, entre outros. Havia neonatologista especialista para cada área do corpo, viveríamos em consultas enchendo os cofres do convênio médico.
Nos recusamos, Geraldo e eu, a submeter o Tao a mais invasões, a coisa foi tão aviltante que resolvemos mudar de vida; Geraldo pediu demissão e fomos morar numa bucólica vila de pescadores no Espírito Santo. Se ele tivesse mesmo algum problema, qualquer problema, que ao menos fosse uma criança livre de testes, que não levasse sobre sua cabeça a espada da desconfiança, que sempre está presente no excesso de intervenções à soberania da vida. Foi à conta, no Espírito Santo encontramos pediatras e obstetras humanistas que se tornaram mais que médicos; amigos. Obviamente seguimos a cartilha da consulta mensal. Dra Sumaia Salume só sorria, brincava com ele, observava o estado geral, fazia as perguntes de praxe, sempre na maior tranqüilidade, não havia nada a receitar para um bebê saudável, que havia vencido tão bem a desumanidade de um parto forçado. Jamais descobriremos como a bactéria entrou na corrente sangüínea do Tao. Pode ter sido na hora em que a bolsa foi rompida; a Dra Intuição segredou em meu ouvido que foi pelo umbigo, no trato mal feito no berçário, mas ela não tem mestrado nem doutorado, é mal vista, mal falada e desconsiderada, assim que não saberemos com exatidão.
Tao cresceu e se desenvolveu normalmente, sem gripes ou dores de ouvido, nem sabe o que é dor de garganta, nunca teve uma amidalite, nenhuma ite qualquer, mamou em meu peito até um ano e oito meses e hoje é um adolescente de 16 anos que já mede 1m e 86 cm, se sai muito bem na escola em todas as matérias, é praticante de vôlei e windsurf, gosta de bicicleta, caminhadas na natureza, curte inglês e óbvio, computador, que é onde mais pego no pé dele, fora cortar grama do jardim e ajudar nas lidas da comunidade familiar.
É um sujeito de humor apurado, sabe arrancar gargalhada com tiradas inteligentes, mas ele mesmo não ri a toa, ainda que possua um sorriso de dentes quadrados pra lá de cativante. É caladão, como o pai, discreto, como o pai, mais para tímido, como o pai; acho que já nasceu com vergonha de me ver rodar a baiana, ri com o canto da boca quando me ouve fazer piadas com as moças do telemarketing, às vezes até penso que as notas altas na escola e o bom comportamento servem como estratégia para evitar minha presença, marcante digamos assim. Em pleno vendaval ele diz:“ô mãe, não morri na onda do parto, não vai ser de windsurf, sossega que agora já tô bem grandinho”.
Tao é inteiramente responsável por um aprendizado que a ele serei eternamente grata: aprendi com sua existência, mais do que com seu nascimento, a confiar em mim; com ele descobri o que é intuição e para que serve essa bússola, que quando desativada pode nos levar a perdas irreparáveis. E olha só, não é por nada não, pode ser coisa de louca varrida, mas ele tem uma visão perfeita, sem qualquer milionésimo de grau, seus olhos de ameixa preta têm cílios igualmente negros, retos e compridos, sobrancelhas espessas… só o que falta é o bacana arrumar uma namorada enfermeira para contrariar o primeiro conselho materno.
Bem, depois que o Tao nasceu aprendi que conciliar trabalho com maternidade, não era o bicho de sete-cabeças que eu imaginava, mas também não foi suquinho, eu revi alguns planos, estabeleci novas metas e formas de me relacionar com o mercado.
Para fugir do pavor que eu sempre tive de ser uma mãe ausente, tornei-me uma profissional menos vaidosa e passei a viver como free-lance, um modo de vida que não é necessariamente menos vantajoso economicamente, mas vai trabalho e vem remuneração sem muitos louros, sem a parte social da coisa.
Andei ensaiando ser uma nova mulher em 1998, quando Tao e sua irmã Gaia, nascida dois anos depois dele, já estavam maiorzinhos, vai que eu guardasse alguma invejinha das colegas de redação; topei um empregão, com um salário fixo dos melhores, mas depois de um tempo em que me diverti com a coisa e comprei um monte de porcarias para eles, joguei a toalha, estava engordando, o que nunca foi meu padrão, vivia estressada, chegava sempre atrasada para buscá-los na escola, perdi apresentações de indiozinhos, feira de livros, não tinha mais tempo para cozinhar e durante a semana quase não os via. Enfim, a vida de mãe e de trabalhadora full time com hora marcada e plantões não fez a minha cabeça e voltei aos frilas, trabalhando solitária e com alto rendimento nos horários mais loucos, quando a maternidade não aponta seu dedão de culpa para mim.
Geraldo e eu, além do Tao e da Gaia, conseguimos produzir ainda a lindeza da decidida Tami, nos últimos minutos do segundo tempo, quando eu estava com 38 anos; as meninas nasceram em casa.
Ah, hoje em dia, depois de 16 anos, eu consigo cozinhar vários pratos ao mesmo tempo sem deixar que alguma coisa queime, mas ainda escuto Titãs, agora até enquanto trabalho e sem perder a concentração. Algumas coisas, afinal, se ganham com a idade, além de cabelos brancos e dor nas costas.
Quanto ao sonho de cobrir guerras, ele sumiu do meu campo de visão, continuo correndo da polícia e dos barulhos de sirene em geral.