Gaia – nascimento de Lorenzo.
Túnel do tempo rápido: nove meses atrás, o dia em que soubemos que eu tinha um bebê na barriga. Era um domingo daqueles pós-balada, final de janeiro, eu e o Marcelo estávamos no auge de um longo período de festas, chill-outs e noites sem dormir. Eu sentia o corpo um pouco estranho há alguns dias – inchaço, sede de camelo, peitos doloridos. No fundo, a gente sabe. E em uma manhã ensolarada, antes de acordar para outra festa, achei sensato fazer o exame de urina que tinha comprado no dia anterior, voltando bêbada pra casa.
Com um olho aberto e outro fechado, mirei o xixi naquele palitinho de plástico branco, esperei os três minutos e… dois risquinhos.
“Má, acorda! … Fiz o exame agora no banheiro. Olha, baby, deu positivo”. É um daqueles momentos que ficam estáticos no relógio. Ele só sorriu me olhando nos olhos e me abraçou, enquanto eu desabava chorando. Não duvidei do resultado em nenhum momento. Mas e se ele me odiar por isso? E como vai ser minha vida daqui pra frente? E meu trabalho? E será que o bebê vai nascer e crescer bem, com meses de vida junkie correndo no nosso sangue? Nada. O tempo cuidou de acertar as coisas. O começo foi difícil, pelas nossas próprias pendências a acertar e pelos fatores hormonais enlouquecedores. Alguma força divina creio, uma ajuda da senhorita Sorte, cuidou de manter nossa saúde perfeita durante toda a gestação – nada de anemia, nenhuma anomalia, nada para assustar.
Com essa segurança em mente e um bom médico já encontrado – o Dr. Marcos Tadeu Garcia, indicação de uma colega de trabalho da minha irmã, a Caru, e endossado pelas recém-colegas de duas listas pró-parto que assinei – fui em frente e comecei a pesquisar. Os nove meses são pouco para absorver tanta informação sobre parto e cuidados pós-parto que é jogada em cima das recém-mamães. Vai de cada uma aprender a filtrar. Nesse sentido a ajuda do obstetra e das listas foi essencial. Por ali vieram ótimas dicas de leitura, sites, artigos, encontros, cursos e tudo o mais.
E o parto foi se desenhando na minha cabeça, naturalmente, sem pressa. Guardei a pressa para outras coisas, como agilizar a mudança de casa, resolver minha situação no trabalho. Entre conversas e pesquisas, resolvemos que queríamos receber o bebê em um bom hospital, e descobrimos que o plano cobria o Albert Einstein. Visitar a maternidade foi um dos primeiros passos, e a impressão foi ótima. Lendo relatos de outras mamães que receberam seus bebês lá, e lendo opiniões das listas materna_sp e partonosso, a decisão foi tomada. As decisões seguintes foram sendo tomadas em conversas de consultório, conversas em casa e conversas internas.
Desde o começo tinha na cabeça alguns pontos bastante claros: um deles foi à certeza de que estava sendo assistida por um profissional de primeira, que estava ali para me ajudar com essa experiência totalmente nova na minha vida, e não para tentar desvirtuar minhas decisões. Essa relação de confiança foi muito importante em todo o processo, porque o obstetra se torna um porto seguro, um amigo, e não um estranho com opiniões fundamentadas em dados médicos que você não entende, que você deve temer.
Escutar as opiniões do meu marido sobre o processo de chegada do bebê também foi essencial. Não acredito que o empoderamento da mulher apague a participação das duas outras protagonistas dessa história: o pai e o bebê.

Eu e o Marcelo discutimos bastante durante a gestação, sempre tentando chegar em pontos que deixassem ambos seguros. Prefiro mil vezes ter um marido turrão, porém com opinião própria e interesse, do que ouvir um “ah querida, faremos como você quiser”. Não fiz o bebê sozinha, exijo participação. E o Marcelo foi um pai ativo desde o começo, saber que ele estaria ao meu lado só me encheu de segurança. O outro ponto que eu insisti desde o começo foi: no TP eu quero a presença do meu marido e do meu médico. E só. E assim foi.
Os nove meses se arrastaram, principalmente os últimos três. A gestação foi muito calma, me alimentei bem, ganhei pouco peso (13,5 kg no total, o médico julgou muito, eu achei ótimo), fiz algum exercício (yoga, caminhadas no finalzinho) e segui a risca a decisão de me poupar e evitar situações que não me fizessem bem. Aproveitei todos os momentos caseiros para me alimentar bem e ler muito. Passei horas na internet lendo artigos relacionados à gestação e saúde da mulher, lí diversos livros e relatos de parto disponíveis na internet. Foi um período de muito descanso. E de muito trabalho também, com barreiras profissionais para escalar em prazo curto e uma mudança de casa que engoliu toda nossa energia e dinheiro. Foi trabalhoso e em diversos momentos foi estressante, mas deu certo: quando entrei na 38ª semana nós já estávamos comemorando a chegada na nova casa ao mesmo tempo em que eu estava me despedindo do escritório e recepcionando minha “substituta”.
Com tudo em cima, ficamos esperando a chegada do bebê – chamamos o tempo todo de bebê, já que optamos por não saber o sexo dele. Durante a gestação fiz um total de cinco exames de ultrassonografia, que sempre mostravam o bebê em perfeita saúde. No último US, que concidentemente foi no dia em que começou o TP, o Dr Maurício Saito (um ultrassonografista de primeira que eu recomendo para qualquer gestante!) viu uma circular de cordão e avisou o Marcos, mas nos deixou calmos, fazendo questão de frisar que a circular não era indicativa de cesariana ou problemas durante o parto. Foi bom saber que ela estava ali, mas não nos preocupamos com isso.
O trabalho de parto começou no dia 11 de outubro, com 40 semanas e quatro dias, por volta das 15:30 hs. Foi quando me dei conta de que as contrações que vinha sentindo nos últimos dias tinham se tornados fortes e ritmadas. Minha mãe estava comigo, me ajudando a pendurar cortinas – as mesmas que eram minhas quando eu era bebê – no quartinho que preparamos para o recém-nascido, e foi embora por volta das 17 hs. Pouco antes disso o Marcelo veio pra casa. Ficamos juntos, conversando e queimando CDS com trilha sonora para a hora do parto. Começou a bater uma ansiedade forte, por mais que eu tentasse me manter calma, quando a dor chegava era difícil manter o foco. Ligamos para o Marcos, que quis falar comigo no telefone e me dizia para não apressar, que estava tudo bem e que quando fosse a hora de ir para a maternidade a gente ia saber. Por volta das 19:30 hs eu decidi que queria sair de casa – já estava literalmente rolando no chão da sala! Incomodava-me não saber bem o que estava acontecendo, e estava tão assustada com a dor que estava sendo difícil retomar o controle.
Senti vontade de estar em outro lugar, com pessoas do meu lado me ajudando e de sair de casa, tomar um ar no rosto, tentar distrair. Demoramos para sair – a função de fechar a casa, guardar gato e cachorro, recolher tudo e passar na casa do amigo para emprestar um aparelho de som portátil – e quando chegamos na maternidade já era 21:30 hs. Fui examinada por uma obstetriz na triagem, que foi muito simpática e me lembrou de algo que estava apagado pela dor: respirar. “Quando a dor vier com força, coloca sua cabeça na respiração”, ela disse, e lembrei de quanto tempo tinha passado em exercícios de respiração na yoga. O conselho ficou comigo até o final.
A obstetriz confirmou que eu estava com 4/5 centímetros de dilatação, 3 contrações a cada 10 min. Pegou meus dados com meu marido, nos encaminhou para a suíte de parto que desejávamos (a LDR, onde você fica durante todo o TP e depois, em recuperação) e chamou meu médico. Eu quis ir andando para a suíte e ninguém deu um pio ou insistiu para que eu usasse a cadeira de rodas que estava disponível. No meio do corredor, a bolsa estourou! Eram 22:30 hs. A sensação imediata foi de muito alívio, como se tivesse liberado uma pressão enorme. Quando cheguei no quarto a banheira já estava cheia de água quente, entrei e fiquei lá relaxando. Estava quente demais na verdade, mas a sensação da água batendo no corpo era tão relaxante que não percebi. Veio a enfermeira colher meu sangue – para o banco de células-tronco onde decidimos armazenar o cordão do nosso bebê – e sugeriu que eu saísse até a água esfriar, mas eu não quis. Quando o Marcos chegou, eu que sou hipotensa estava praticamente desmaiada na água. Ele, sob muita insistência, me convenceu a sair da água e o Marcelo deu uma esfriada na banheira, então voltei. E aí começou a doer de verdade.
Eu só conseguia pensar que nada havia me preparado para a dor. Nenhum relato, nenhuma gravação, nada. É algo que rasga por dentro, faz você esquecer o próprio nome, virar os olhos. A água ajudava, os carinhos do Marcelo ajudavam, a respiração ajudava, mas a cada contração – e o intervalo entre elas era cada vez mais curto – eu pedia descanso. Fiquei exaurida rapidamente e só repetia que estava muito cansada, que precisava de mais tempo para me recuperar. Ainda dentro da banheira comecei a pedir anestesia e juro que se tivesse um anestesia presente na sala eu teria exigido uma aplicação. Na verdade, queria tomar qualquer chapante que me ajudasse a apagar antes da próxima contração chegar. O Marcos e o Marcelo me lembravam de que eu havia pensado muito sobre o assunto e tinha pedido para eles segurarem minha onda em relação à anestesia. O Marcos me dizia para agüentar, que até o anestesista chegar ia demorar muito, que a fase mais difícil estava acabando… E aí eu comecei a perceber que, quando mais eu desligasse do mundo, mais fácil era de enfrentar a dor. Começava contando as respirações – um, dois, três, quatro, cinco, seis… e tentava mantê-la ritmada, de forma que quando eu chegasse no dez sabia que estava acabando. A contagem criava um transe, que era interrompido a cada vez que o Marcelo ou o Marcos falavam comigo e me pediam algo, mas não era difícil retornar.
Quando me pediram para ir até a cama verificar a dilatação – já montada de forma que eu pudesse ficar sentada e procurar a melhor posição – eu já estava com 8 pra 9 centímetros. Não quis voltar para a banheira, acredito que por falta de forças para fazer todo o “longo caminho” e fiquei por lá mesmo.
O bebê estava “virado”. Não sei o nome para a posição, mas estava com a cabecinha ao contrário do que deveria para ser mais fácil escorregar, olhando para o chão. Por meio de toques, o Marcos tentava ajudar a virar, mas ele descia e voltava. Foi colocada uma cinta para escutar os batimentos do bebê – que em diversos momentos escutava os meus batimentos ao invés dos dele e eu passei a tentar manter a calma. Lembro de ter passado algum tempo de quatro para ajudar a posição do bebê e não demorou muito para me avisarem que eu já tinha 10 centímetros de dilatação, que o bebê estava na posição para descer com mais facilidade. Já podíamos ver a o cabelinho dele, e isso tornou mais fácil manter o foco. Entre um transe e outro eu acordava para fazer força para ajudá-lo a descer e sem que eu percebesse o tempo passar, esse processo durou 01:30 hs. De repente eu ví a movimentação toda: o Marcos com a roupa verde de médico, a Karla me ajudando a não parar a respiração, a cabeça do Lorenzo no espelho, o Marcelo do meu lado apertando minha mão e ligando a filmadora.
E entre muita força, muitos gritos (berros!) e uma dor que não é mais exatamente uma dor, de tão intensa e especial, eu ouvi alguém dizer: “é um garotão!”. A surpresa que a gente queria finalmente tinha chegado. Foi tão fudidamente bom ter o Marcelo ali nessa hora, olhar os olhos dele quando o bebê foi colocado no meu peito, ainda todo sujo de vérnix, se mexendo e começando a chorar. Segurar o bebê e ver que ele tá inteirinho, vivo e bem. Qualquer resto de dor desapareceu, ele abriu os olhos (enormes, pretos, como eu queria que fossem) e ficamos ali, nos examinando, cheirando, totalmente alheios ao que estava acontecendo no resto da sala. Éramos só nos três, pai, mãe e filho, a família recém-formada tendo seu primeiro contato.
A neonatalogista do Einstein, que assistiu ao momento do nascimento, não teve nenhuma pressa em tirar o bebê do meu colo para examinar, e quando o fez pediu com muito jeito e perguntou qual era o nome. Indo para o berço, montado a alguns centímetros da minha cama, ele foi batizado: Lorenzo, o nome que eu e o Marcelo tínhamos combinado.
Soubemos que o Lorenzo nasceu às 02:55 hs do dia 12/10/2004, com 49 cm, 3,265 kg, apgar 8/10 e a tal circular de cordão prendendo a mãozinha dele ao lado da orelha direita. Em alguns minutos o bebê de cabeça pontuda estava seco, quente, rosado, com a pulseira de identificação e de volta ao meu colo para uma primeira mamada de colostro, enquanto o pessoal “lá embaixo” começava a dar pontos onde havia lacerado. Foram aproximadamente cinco pontos nos músculos ao redor do períneo, que doeram um pouco no dia seguinte e continuam em cicatrização. A costura foi mais desagradável do que ter que sentar na almofadinha com furo no meio depois, mas acredito que ainda assim foi menos traumático do que um corte mais profundo, bem dado com bisturi.
Rapidamente as enfermeiras arrumaram todo o quarto, não deixando qualquer vestígio de material hospitalar. Todo mundo saiu e eu, Marcelo e Lorenzo ficamos apenas com a companhia do Marcos e da Karla, conversando, relaxando e vendo fotos e filmes. Eles ficaram conosco até por volta de 05 hs da manhã, quando eu autorizei a ida do Lorenzo para o berçário (algo que achei que não ia fazer, mas que no momento não me pareceu um problema) e finalmente ganhei comida e merecidas horas de sono. Que foram poucas, por volta das oito da manhã Lorenzo estava de volta no quarto. Só saiu de lá para vir conosco para casa. Teve um começo de icterícia que não evoluiu, tomou as vacinas após darmos autorização por escrito, doou suas células do cordão para o banco público de células-tronco, como desejávamos.

Gaia – Lorenzo